03 de Maio de 2025

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GERAL Sexta-feira, 02 de Maio de 2025, 13:51 - A | A

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REPRESENTATIVIDADE

Lupita Amorim lança livro de poesias e se destaca ao abordar temas de resistência, arte e identidade

Apesar das contradições do sistema cultural, a multiartista destaca que hoje possui mais representatividade real e espaços abertos a apresentações, peças teatrais, cursos e entre outros projetos.

Ana Carolina Guerra Redação

A artista, escritora e performer mato-grossense Lupita Amorim, 26 anos, lançou neste ano seu primeiro livro solo, uma coletânea poética que reúne reflexões sobre identidade, negritude, cotidiano e resistência. Com cerca de 80 páginas, a obra transita entre o íntimo e o político, entre o sensível e o manifesto — sendo um convite à escuta e ao reconhecimento, sobretudo das vivências de quem ocupa as margens e transforma essas margens em centro.

Nascida e criada em Várzea Grande (MT), Lupita escreve a partir de um lugar muito próprio — por isso mesmo, universal. Suas palavras são atravessadas pela experiência de ser uma mulher trans e negra no Brasil, revelando em suas poesias o dia a dia, as tensões, os afetos e as estratégias de sobrevivência na cidade.

“Transformo essas poesias de resistência em coisas engraçadas também. Digo que exploro o universo da caminhada. Tudo o que escrevi ainda poderia ser mais, porém, precisei encurtar porque já eram mais de 80 páginas”, relata, em entrevista.

O processo de criação do livro começou entre 2020 e 2021, período em que Lupita fazia longas caminhadas e pedaladas por Cuiabá e Várzea Grande. Nesses percursos cotidianos, encontrou a matéria-prima para escrever, enquanto arquitetava o estilo de roupa, a playlist e as metas do dia.

Mais do que um livro, a obra é um ato de afirmação e resistência diante de uma sociedade que insiste em invisibilizar determinados corpos e gêneros. A artista mescla dicas práticas de como sobreviver à cidade sendo quem se é, com poesia e crítica social.

Ela conta que o maior desafio foi confiar em si mesma — por muito tempo, escreveu em coletivos ou projetos com outras pessoas, mas lançar uma obra solo exigiu um novo nível de autoconfiança.

“O mais difícil foi acreditar que o que eu fazia era bom. Antes, gostava do que escrevia quando era com outras pessoas, mas tinha medo de não gostar que saía só de mim. Sabe quando você escreve algo e nem quer ler na hora? Aí depois lê e pensa: até que sou boa!”, comenta.

Para ela, caminhar é mais que se deslocar: é uma performance cotidiana, uma forma de existir. Reforça que a sociedade está acostumada a pensar que pessoas da sua classe só pode ser vistas à noite e, com este livro, mostra que não é assim — que podem e devem ser vistas realizando atividades comuns do dia a dia, sem medo de existir. A escritora destaca que o fato de ser reconhecida diariamente em seu bairro por motoristas de aplicativos, vizinhos, parentes e amigos, enquanto fazia atividade física, a motivou e lhe deu ideias durante a escrita.

A coletânea se propõe a dialogar com públicos diversos: tanto com quem compartilha de suas vivências quanto com quem nunca precisou se preocupar com o simples ato de sair de casa. “Nós, pessoas pretas e LGBTs, vamos nos reconhecer em várias partes do livro. Mas quem está do outro lado da moeda, caso leia, pode sentir várias emoções. O que mais quero, é que percebam que nossas vidas não são só violência. Muitas vezes, quando pensam em pessoas trans e negras, só pensam em dor. Mas existe muito mais sobre nós. Queria que o livro tivesse um título que chamasse qualquer pessoa, e que lessem por quererem poesias”, descreve.

Na obra, Lupita transita por diferentes camadas da experiência humana: há textos em que fala diretamente sobre sua condição de pessoa trans e negra, enquanto em outros essa identidade nem é mencionada. Em algumas poesias, o foco está apenas no ato de caminhar, nas observações do cotidiano e nas pequenas cenas da vida urbana. Em outras, aborda explicitamente sua vivência, sua cidade e as violências que enfrenta.

Com isso, a autora permite que o leitor se identifique em diferentes níveis ou, simplesmente, entre em contato com uma realidade distinta da sua.

O lançamento do livro ocorreu no dia 15 de março, no Centro Cultural Casa das Pretas, em Cuiabá, e se tornou um marco simbólico de conquista. O evento reuniu um público diverso e amante da cultura regional.

A trajetória da artista também suscita reflexões sobre os espaços ocupados na cena cultural de Cuiabá e do Brasil. Ela reconhece os avanços, como a presença de cotas, editais voltados a grupos minorizados e maior visibilidade, mas também problematiza a forma como essas iniciativas ainda são limitadas.

“Muitas vezes, é só um ou dois projetos por grupo. Você diz que é negra e LGBT, e já restringem. Como se só coubesse uma ou duas de nós. E aí tem outra questão: em que momento minha literatura é literatura LGBT, e em que momento é só literatura? Faço música também. Se tem edital de música e um de música LGBT, eu me inscrevo em qual? Se for na geral, é mais difícil entrar. Mas eu não faço só ‘música LGBT’, faço música. Essa é uma questão que estamos tentando entender enquanto artistas negros e LGBTs”, questiona.

Um dos momentos que simbolizou esse avanço foi sua participação no podcast da Assembleia Legislativa de Mato Grosso, onde foi bem recebida como artista — e reconhece que chegou até lá através do seu talento e esforço, e não como “cota social”.

O livro de Lupita Amorim se apresenta como um marco na literatura contemporânea produzida por artistas dissidentes em Mato Grosso. Sua obra é mais que um livro: é um grito de existência, beleza e autonomia. A cada página, desafia as narrativas impostas, oferecendo outras possibilidades de viver, sentir e caminhar no mundo. Como ela mesma afirma, através da poesia:

“Vou sair de dia. E vou sair com a cabeça erguida e o nariz empinado”.


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