Padre Mauro Verzeletti, atual diretor do Centro Pastoral para Migrantes, carrega consigo uma bagagem de grandes experiências no apoio direto a imigrantes. “A Congregação dos Missionários de São Carlos de Scalabrinianos pediu que iniciasse uma missão na fronteira México-Estados Unidos.”, explicou.
Após cinco anos na fronteira, Mauro foi convocado para o trabalho humanitário na América Central, chegando na Guatemala no ano de 1988 e em El Salvador, no ano de 2013. “Foram praticamente 30 anos fora do Brasil. Quando retornei em 2022, pós-pandemia, fiz pós-graduação em Ciências Políticas, para me adaptar à conjuntura atual do Brasil. 30 anos fora, muda bastante coisa no país. Estava presente no Brasil quando ainda havia a luta pelas Diretas.”, relatou o padre em respeito a seu retorno após os anos residindo nas missões em outros países.
“Agora estou aqui em Cuiabá, cheguei em fevereiro desse ano para dar uma atenção a essas pessoas, que sempre foi o meu trabalho; o meu carisma. Trabalhar com a população. Sempre me dediquei a isso nesses 30 anos fora do Brasil e não seria aqui que mudaria. É o meu lugar este de trabalhar diretamente com uma população migrante.”, completou.
Dentre os relatos sobre sua perceptível visão apaixonada no trabalho de apoio aos imigrantes, Padre Mauro também lista as dificuldades que existem na área e principalmente, as dificuldades sofridas por aqueles que migram. “Por exemplo, a questão da documentação, a questão do idioma e toda a questão da inserção laboral, que é um tema que também a gente (da Pastoral) acompanha. Temos a carteira de trabalho e temos toda a questão da execução de projetos para beneficiar a população. Praticamente são 400 pessoas por mês, a gente faz um encaminhamento para a documentação, para a questão de CPF, para a Polícia Federal, para que assim, eles possam ter a documentação para poder ingressar no mercado laboral.”
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Fundada em 1980, o Centro Pastoral Para Migrantes possui, atualmente, cerca de 100 pessoas abrigadas, chegando ao fluxo de 1000 pessoas por ano. No local, recebem ajudas humanitárias, de documentação, inserção laboral, creche para as crianças e, juntamente a isso, acesso ao café da manhã, almoço e janta. Sobre a existência da creche na Pastoral, o padre afirma: “Isso é um tema importante, porque os pais, as mães, estão trabalhando e as crianças estão aqui bem cuidadas, guardadas aqui. Se não, os pais não conseguiriam ingressar no mercado para trabalhar. É uma parceria que temos como o município, que nos apoia com os trabalhadores”.
O maior fluxo de pessoas no Centro Pastoral são os venezuelanos. Entretanto, há a presença de haitianos, cubanos, bolivianos, bem como também casos continentais, de imigrantes que vêm de países africanos e até da Síria. “Aqui passam pessoas de muitas, muitas nacionalidades. E isso é um desafio muito grande para a atenção, o acompanhamento dessas pessoas que chegam em uma situação de vulnerabilidade, que recebem esse apoio com emergência.
Por ter um grande fluxo de pessoas de diversas nacionalidades, ao Centro Pastoral busca executar a integração dessas pessoas por meio de atividades além do convívio social diário. Além disso, há também o fortalecimento de integração de imigrantes e nativos, impulsionando e influenciando o encontro de culturas distintas que podem e devem coexistir em uma sociedade. “Usamos muito as palavras do Papa Francisco: acolher, proteger, promover e integrar. São palavras muito sábias, porque devemos trabalhar para integrar. O processo de acolhimento tem também um processo de integração e de compreensão. Que existam políticas públicas, que acolham políticas públicas, que ensinem políticas públicas, que abram oportunidades laborais para os migrantes, para que os filhos do migrante possam estudar. Enfim, tudo aquilo que é necessário dentro do que são os direitos civis, direitos econômicos, políticos, sociais e culturais. Isso também é fundamental para o desenvolvimento integrado das pessoas”, explicou o Padre.
“As culturas são importantes, as culturas devem ser acolhidas, as culturas devem ser valorizadas para que toda a população veja que o migrante não vem aqui para roubar trabalho. Ele não é ladrão, ele vem para conseguir trabalhar. Se ele está trabalhando, ele está gerando capital, está gerando dinheiro, está gerando desenvolvimento. Temos que retirar esses estereótipos.”, concluiu.
Um fator que culmina e alimenta a xenofobia em Cuiabá, na visão de Mauro, é a associação generalizada de imigrantes a facções criminosas. E reafirma novamente o papel daqueles nativos de países e cidades que recebem maior quantidade de imigrantes, como é o caso do Brasil e de Cuiabá.
“Primeiramente, devemos acolher. Não ver o migrante como um delinquente, um criminoso. A sociedade precisa trocar sua mentalidade e ver que imigrantes possuem sonhos e que buscam realizar esses sonhos, como qualquer ser humano. Eles migram não porque querem, mas porque são obrigados devido diversos fatores e estão em busca de oportunidades além de suas próprias fronteiras.”
Segundo a Polícia Federal, residem cerca de 20,4 mil imigrantes no estado de Mato Grosso, sendo 9,9 mil deles em Cuiabá e, em sua maioria, venezuelanos.
Com dados da Secretária Municipal, São 112 no Albergue Municipal Manoel Miráglia; e 10 pessoas na Associação Terapêutica, Ambiental e Acolhimento Paraíso (ATAAP), além de 80 a 100 pessoas que frequentam o Centro Pastoral do Migrante.
Yndira Villarroel é venezuelana, crescida na cidade de El Tigre, onde passou boa parte de sua infância e adolescência. Já aos 7 anos, deu início a sua carreira musical em seu país de origem, no piano. Seguidamente, iniciou no violino, área onde se especializou atualmente. Com o violino e a formação de orquestra, adentrou o projeto ‘El Sistema’, conhecido mundialmente e que ocasionou sua vinda para Cuiabá posteriormente. “É um órgão que abre muitas portas, porque o foco desse projeto de ensino musical gratuito é exatamente isso: juntar em pequenas formações de nível iniciante, intermediário, avançado, todos os alunos e não tem uma camada social só. É para todas as camadas sociais, especialmente para aquelas que são mais vulneráveis. Embora não fosse desse extrato social, também não era do alto, não pertencia ao alto da Venezuela.”, explicou Yndira.
2010 foi o ano do início do processo de migração de Yndira, quando lhe foi ofertada uma bolsa para participar de um festival de verão nos Estados Unidos. Nesse festival, ganhou outra bolsa, desta vez lhe garantindo uma graduação performance, que é o violino. Estudou na Flórida, na universidade Palm Beach Atlanta por um ano e fez dois anos desse festival de verão, iniciou os estudos de graduação, mas não finalizou. Retornou para a Venezuela em 2011, para continuar seu trabalho no projeto El Sistema.
Ainda nos Estados Unidos, Yndira conheceu e fez amizades com brasileiros que, mesmo depois de sua volta para a Venezuela, ainda enviavam mensagens e informativos sobre outros festivais e projetos. Nesse meio tempo, a violinista se deparou com um festival em que boa parte de seus amigos já haviam aplicado e até mesmo as inscrições para se obter a bolsa haviam sido encerradas. Todavia, quando uma de suas amizades entrou em contato com o diretor do projeto, a venezuelana consegue bolsa integral no momento em que o diretor avalia seus diversos trabalhos já produzidos.
Isso culminou em sua vinda definitiva para o Brasil em março de 2012. A violinista relata que, com os fundos garantidos do grupo El Sistema e muito planejamento, sua migração para o Brasil ocorreu, primeiramente, para São Paulo, lugar em que ficou residindo por um tempo no CRUSP, alojamento estudantil da Universidade de São Paulo. “Foi um período muito gostoso porque só estudava. Estudava, viajava com orquestra, fazia concertos em salas incríveis que não pensava que iria fazer tão rapidamente como fiz quando cheguei em São Paulo. Tive oportunidade de tocar na Sala São Paulo, que é uma das salas de concerto mais famosas no Brasil, no Teatro Municipal de São Paulo, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Então, é uma trajetória artística muito bonita chegando no Brasil.”
Em 2015, Villaroel iniciou novamente outra graduação. ”Entrei na faculdade na Uni Santana para fazer a segunda graduação, que é o violino. Comecei a ter aula com o Emanuele Baldini, que é uma eminência no violino, um italiano residente aqui no Brasil e que é uma das principais figuras artísticas nesse instrumento.”
Somente em 2017 a venezuelana fez de Cuiabá sua morada, ao receber a proposta de uma instituição bastante conhecida na capital. “Aceitei a proposta de vir e conhecer esse projeto, que se chama Instituto Ciranda Música e Cidadania. Vim em fevereiro. Passei uns quatro dias por aqui, dei masterclass, ou seja, dei umas aulas para os alunos, conheci a diretoria, professores. Disso se deu o convite oficial para trabalho. Foi um convite muito bom, naquela época era de acordo com a realidade financeira que eu estava procurando. Aceitei, fiquei duas semanas em São Paulo vendendo tudo, consegui voltar para Cuiabá e comecei a trabalhar no dia 6 de março de 2017.”
O convite ofertado pelo Instituto Ciranda se deu pois eles queriam alguém que tivesse se formado no El Sistema, projeto originário da Venezuela o qual Yndira esteve por muito tempo. A partir disso, começaram outros convites das orquestras de Cuiabá e região. Yndira foi organizando uma carreira cada vez mais próspera, extendendo seu currículo através de oportunidades que conseguia por meio de seus grandes trabalhos realizados ao longo dos anos.
“É uma bagagem, uma bagagem que não somente foi adquirida na Venezuela, foi reforçada nos Estados Unidos, ainda reforçada ultimamente no Brasil e com experiência com outras culturas de outros países. Então isso fica em você, né? Cada didática, cada estilo, cada coisa.” relata a violinista, demonstrando a pluralidade de suas vivências.
Com o tempo em Cuiabá, durante a pandemia, Yndira conseguiu conciliar três graduações ao iniciar o bacharelado em Música na UFMT. Se formando em 2022, ainda estudando, continuava na direção dos projetos e em papéis essenciais nas orquestras. A violinista também relatou gostar de escrever; artigos, projetos e tudo que envolva comunicação no geral.
Recentemente, Yndira conta ter conseguido algo extremamente importante: a cidadania brasileira, após 12 anos residindo no país. A venezuelana destaca o quanto isso deve ser celebrado, pois abre muitas portas, oportunidades e garante maior segurança. “A minha vida virou muita coisa ao fazer essa migração. Não pensava que iria me dedicar a tantas coisas como eu me dedico hoje em dia. Não somente uma frente, não somente sou Yndira educadora, não. Passava por tantos níveis de educação, educação em projeto social, educação na escola, educação na universidade. Então, é uma coisa bem importante.”
Após citar experiências boas que se tornaram pontos chaves em sua vida, a musicista também destaca as coisas negativas que vêm em conjunto com a migração.
“É um assédio constante, é um assédio por ser imigrante, é um assédio por ser mulher, é um assédio porque tenho posições de liderança, é um assédio porque tenho que liderar homens, então homens não gostam. Mas a maioria dos assédios que sofri, inclusive a minha pesquisa de mestrado trata sobre isso, foram de mulheres.”
Além de expor as diversas situações de assédio e inconveniência, a imigrante fala também sobre a necessidade de precisar se reafirmar sempre que é colocada em uma boa posição, para que assim, acreditem em sua capacidade e levem seu intelecto em consideração. “O imigrante precisa ter uma formação além e contínua, porque a gente precisa sempre estar demonstrando, ‘opa, eu tenho qualidade’, ‘opa, eu tenho formação’, ‘opa, mas eu sei’. Parece que não isso não muda, é cansativo”.
Yndira também coloca em pauta a diferença entre o tratamento em relação a imigrantes de continentes distintos, alegando o fator do eurocentrismo como principal precursor disso. “A gente não é uma imigrante europeia, a gente é uma imigrante latino-americana. Produto de quê? De países colonizados. Então, a gente se submete ao machismo, a essa coisa toda, ao patriarcado.”
Acima de tudo, a venezuelana garante que as principais coisas de sua cultura que nunca irão se apagar, são seus valores adquiridos por suas relações familiares. A humildade e honestidade preservam um lugar intacto em sua personalidade. “Continuo carregando comigo essa parte humilde. Acho que é uma coisa que não deixo. Não tenho deixado nem em São Paulo, nem aqui. Embora sempre tenha conseguido posições de liderança altas ou trabalhos bons, sempre tem um ponto que paro pra pensar", concluiu Villaroel.