A maternidade, para a terapeuta Carolina Rua e a empresária Laís Guerra, começou muito antes da chegada oficial do filho. Desde que decidiram adotar, todos os passos da vida passaram a considerar a presença da criança, como a escolha do novo apartamento, que precisava ter um quarto para o futuro integrante da família. A decisão de adotar foi amadurecida ao longo do tempo, acompanhada de processos terapêuticos e reflexões, que as levaram a entender que não tinham o desejo pela gestação biológica. A opção por adotar surgiu como uma forma de gestar no coração, expressão que simboliza a construção de uma parentalidade baseada no amor, no afeto e no compromisso, e não necessariamente nos laços biológicos.
O caminho até essa decisão, no entanto, não foi livre de desafios. Às duas enfrentaram pressões familiares e sociais que, muitas vezes, colocam a gestação biológica como única possibilidade legítima de maternidade, reforçando um tipo de resistência ainda mais presente na vida de casais homoafetivos. Apesar dos avanços legais no Brasil, o preconceito social persiste como um dos principais obstáculos para essas famílias.
O processo de adoção no Brasil é o mesmo para qualquer pessoa, independentemente da orientação sexual. A legislação brasileira assegura o direito à adoção para casais homoafetivos desde as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011 e 2015, que reconheceram tanto a união estável quanto a adoção por esses casais. Não há restrições legais, e os procedimentos seguem as mesmas etapas: cadastro, entrevistas, avaliações psicossociais, visitas e, finalmente, a sentença que oficializa a nova configuração familiar.
Dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) mostram que, desde 2019, foram realizadas 1.535 adoções por casais homoafetivos no país, o que representa 6,4% do total de adoções. O número, que era de 145 em 2019, subiu para 416 em 2023 e, apenas em 2024, já foram 203 adoções realizadas por esses casais. Apesar de ainda representar uma pequena parcela do total, o crescimento demonstra avanços significativos na consolidação dos direitos das famílias LGBTQIA+.
Atualmente, há 4.940 crianças e adolescentes esperando por uma família no Brasil. Por outro lado, o número de pretendentes chega a 35.562, sendo que 7% são casais homoafetivos. Ainda assim, a adoção esbarra em um grande desafio: o descompasso entre o perfil das crianças disponíveis e os desejos dos adotantes. A maioria dos pretendentes busca bebês, enquanto a realidade é que a maior parte das crianças e adolescentes disponíveis tem entre 6 e 17 anos, fazem parte de grupos de irmãos ou possuem alguma condição específica de saúde.
O reconhecimento das famílias homoafetivas também se reflete nos números de registros civis. Segundo a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-BR), entre 2021 e 2023, 50.838 crianças foram registradas por casais homoafetivos no país. Esse dado reflete não apenas a consolidação jurídica dessas famílias, mas também um avanço significativo na representação e na aceitação social.
Ao nível institucional, mudanças importantes também estão em curso. O Ministério das Relações Exteriores promoveu atualizações em formulários e cadastros oficiais, substituindo os campos “pai” e “mãe” por “filiação”, de forma a contemplar diferentes configurações familiares, incluindo casais homoafetivos e transafetivos. A mudança, que já é adotada pela Polícia Federal nos passaportes emitidos no Brasil, será estendida para os registros civis de nascimento, casamento e óbito até o terceiro trimestre de 2024. Mesmo com todos os avanços, as estatísticas revelam desigualdades persistentes no perfil das adoções no país. Um levantamento realizado na Bahia em 2024 mostra que, das 86 adoções realizadas no estado, 60,5% foram de crianças com até seis anos de idade. Apenas um adolescente entre 15 e 18 anos foi adotado e nenhuma adoção foi registrada na faixa etária de 18 a 20 anos. Esse panorama escancara a resistência à adoção tardia, embora campanhas promovidas por tribunais de justiça em todo o país busque sensibilizar a população para a importância de olhar com mais empatia e disponibilidade para crianças mais velhas e grupos de irmãos.
O fortalecimento das famílias formadas por casais homoafetivos no Brasil reflete, portanto, não apenas uma conquista jurídica, mas também uma mudança cultural em curso. A maternidade e a paternidade, gestadas no coração, desafiam conceitos tradicionais e afirmam que o amor, o cuidado e o compromisso são os verdadeiros pilares da construção de uma família.